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domingo, 19 de abril de 2020

Abrindo os Portões Imaginários. O desfile marcante do Cubango em 1979

domingo, 19 de abril de 2020
O pesquisador, escritor e compositor João Perigo volta ao ano de 1979 para lembrar os acontecimentos que levaram o GRES Acadêmicos do Cubango a mais importante conquista de sua história, o famoso Pentacampeonato. Confira o artigo.


Abrindo os Portões Imaginários
por João Perigo

            Através dos portões imaginários seremos levados ao longínquo ano de 1979, precisamente à cidade de Niterói. O carnaval local parece dominado pela tetracampeã verde e branca do Morro do Abacaxi. É isso… Toda a atenção estava voltada para o que preparavam os bambas do Cubango, denominados Acadêmicos, para o tão sonhado penta. Marco notório que atingiriam antes mesmo da Seleção Brasileira.
Um projeto campeão dependeria de um enredo bem escolhido. O departamento cultural optou pelo enredo “Afoxé”, uma verdadeira reverência a festejos de cunho religioso realizados na antiga capital da Nigéria, popularizados posteriormente no Brasil, sobretudo na cidade de Salvador: a verdadeira resistência de camadas populares do Brasil, portanto, um enredo rico em cultura, com apelo popular e com temática afro, marca principal da agremiação.
Redigida a sinopse foram convocados os poetas da casa com uma missão nada simples: escrever um hino capaz de levar o Cubango ao título e entrar para a história como o samba do pentacampeonato. As parcerias já se desenhavam há meses. Como por um acaso do destino Heraldo Faria, campeão das disputas de samba enredo para o carnaval de 1978 e ainda novato na ala, convida Flavinho Machado para que façam juntos o samba. Flavinho se empolga com a ideia, mas não firma parceria por resistência de João Tapê, que não queria um terceiro elemento em sua composição. A ironia é que Flavinho e Heraldo formariam a partir do seguinte carnaval uma das duplas mais prósperas nas composições de sambas enredo, tendo alcançado importantes vitórias na Cubango, Viradouro e Mangueira durante as décadas seguintes.
Heraldo relata que à época andava pensativo quanto à abordagem que utilizaria na composição. Tinha ciência que a grande maioria do compositores se atinha ao texto fornecido pela escola. Porém, o jovem compositor tinha a intenção de ir mais a fundo, conhecer de fato o enredo e compreender a história narrada para só então colocar algo no papel. Seria necessária uma pesquisa acerca do tema, fugir das limitações da sinopse, método empregado pelo campeoníssimo David Corrêa nas escolas de samba cariocas e muito utilizado por ninguém menos que Silas de Oliveira, o grande nome do samba enredo.
Dentre as pesquisas encontraria um livreto do Ministério de Educação e Cultura sobre Mãe Menininha do Gantois, narrando uma viagem à Nigéria, precisamente na região de Lagos, foco central do enredo. Neste material constatou que Xangô, oriundo da região, tinha o camelo como seu animal preferido e, portanto, sagrado devido a sua longevidade e resistência sob o intenso calor do deserto. A referência fora corroborada por outros livros e Heraldo viu-se inclinado a finalizar o samba citando tal fato, que nem mesmo pertencia à sinopse, aliado a um refrão cuja letra seria de domínio público. Desenhava-se assim uma das mais importantes obras do carnaval Niteroiense, que nem mesmo estava finalizada, sequer escolhida como samba oficial do Cubango.
O primeiro passo seria mostrar a seu parceiro João Belém que, como motorista, trabalhava para a prefeitura em um canteiro de obras na praia de Icaraí. Lá foi Heraldo com os rabiscos debaixo do braço cantarolar sua melodia. João, com um sorriso de orelha a orelha dispara: “Isso é uma bomba! Vamos pegar esse caminho!”. Marcaram então para finalizar o samba no dia seguinte e, quando o fizeram,  solfejaram a recém nascida canção. Heraldo se assusta ao olhar pro parceiro e perceber que estava chorando copiosamente, visivelmente emocionado com o que haviam criado.
No domingo seguinte Heraldo compareceu a uma feijoada no morro do Abacaxi, mais precisamente na casa de Belém, muito querido na comunidade. João não havia começado sua trajetória no mundo do samba ontem, sabia como tudo funcionava. Não bastava que a obra fosse linda, era preciso que o povo aprendesse rápido e cantasse de forma fácil. Que maneira melhor de testar sua obra que em uma feijoada rodeado de amigos e familiares? Assim o fizeram. Passaram o samba com o povo presente que rapidamente encontrava-se cantando-o por completo, feito mágica.
Dia 25 de Agosto de 1978 iniciou-se a disputa, na sede do Fluminense, com direito a roda de samba e toda pompa de grande evento. Oito obras foram inscritas pelos poetas da casa. É bem verdade que algum tempo antes a Ala de Compositores tentou barrar a participação de João Belém nas disputas, alegando sua ausência em reuniões e ensaios, tendo sido até mesmo votada sua suspensão em assembléia. Por sorte a situação foi contornada e a verde e branca foi agraciada com uma espetacular obra que, ganhando força na eliminatória do dia 8 seguinte, chegou com fôlego, e certa sobra, para a grande final do dia 29 de Setembro. O resultado não poderia ser outro: Heraldo Faria bicampeão e João Belém, apesar de veterano, ganhara seu primeiro samba enredo em sua amada escola.
A repercussão pré carnaval aconteceu de maneira nunca antes vista na cidade. A força melódica da obra aliada à poética simples e de requintado bom gosto rendeu uma gravação de qualidade no elepê das escolas de samba de niterói de 1979, que não havia sido produzido mais desde um teste inicial em 1974. Esse conjunto de fatores impulsionou a composição pela Baía de Guanabara e pelo resto do Brasil, sendo apontada por especialistas e jornais da época como o melhor samba enredo do país naquele ano. Segundo o Pasquim de 16 de Março: ‘Infinitamente superior a tudo que será cantado na Marquês de Sapucaí”. Durante o período de carnaval o Cubango é inclusive convidado para desfilar no Rio de Janeiro sob alegações de que não teria mais concorrentes em sua cidade de origem.
Seguiam os ensaios às sextas no Fluminense e aos domingos no ginásio do Fonseca. Bateria e canto afiados para uma apresentação impecável frente aos jurados durante os 70 minutos de desfiles nos 400 metros de passarela na Amaral Peixoto. O carro de som comandado por Flavinho e Mariozinho contaria com o reforço de gala de Elza Soares durante o desfile, para guiar o canto dos 3200 componentes divididos em 139 alas. A bateria comandada por Mestres Charles e Nelson Nei contaria com 266 ritmistas, dentre eles 40 tamborins para abrilhantar o ritmo. A ala das crianças com mais de 100 pequenos prometia ser uma atração à parte.
No entanto, apesar de certos segmentos estarem trabalhando muito bem, não era a escola como um todo que funcionava perfeitamente. Alguns atritos internos resultaram na saída de destaques, do casal de mestre sala e porta bandeira e da Ala dos Artistas por completo, que migrou para a Viradouro.
Os trabalhos no barracão, situado na Rua Visconde do Rio Branco, seguiam comandados por Luiz Beleza, Neném, Ari Sergio, Flavio Duarte, José Fraga, Luís Gonzaga, Ledir, Carlos Alberto, Jair Castor, Jorginho, Paulinho, Eugênio e Borges a construção de quatro carros alegóricos, doze tripés com máscaras tribais e o famoso portão imaginário, feito de bambu e com efeitos de fumaça com gelo seco. O abre alas, do Afoxé, possuía medalhões em cobre, o nome da escola e como destaques um menino representando Babalotim e sete mulatas. No segundo carro oito ninfas de Exu guardando um tesouro, com fantasias caríssimas. O terceiro carro contava com atabaques, à frente da bateria e o quarto e último carro traria Xangô e seu Camelo sagrado, sendo o mais aplaudido durante o desfile oficial, orçado em quatro milhões de Cruzeiros, pensado em cada detalhe a exaustão para que nada desse errado na busca pelo Pentacampeonato. A mente por trás de cada detalhe era Carlos Alberto Costa, carnavalesco com bagagem e passagem vitoriosa pela agremiação.
Ao pisar na Avenida Amaral Peixoto o GRES Acadêmicos do Cubango é recebido pelo público de forma calorosa. Os vinte mil presentes se agitaram nos primeiros versos cantados por Elza Soares. Daí em diante tudo que se ouvia eram os refrões entoados a plenos pulmões pelas arquibancadas e pelos desfilantes que transbordavam de animação. O Sol das seis da manhã, nascendo por detrás do Morro Indígena refletia nas roupas brilhantes, tudo friamente calculado. Apesar de não ter conseguido levar os 3200 prometidos desfilantes a Cubango foi uma das maiores agremiações a cruzarem a Amaral Peixoto em 1979, conseguindo, segundo a imprensa: “Unir seus sambistas numa só corrente”.
Viu-se àquela noite um desfile de gala. Trajes africanos, pedrarias, mulheres onças. Concebidos em materiais baratos e de grande efeito, como sisal, lamê e ráfia. Os destaques foram muito elogiados pelo “banho de luxo”.O Cubango deixa a passarela já de dia, depois das sete da manhã, sob gritos de Campeã e arrastando o público em um bloco que se estenderia para além dos eventos oficiais.
Na apuração as notas não fogem ao esperado: o antológico samba enredo gabarita, assim como alegorias, harmonia, bateria, fantasias e comissão de frente. O casal, elogiado pelo imprensa em sua apresentação, recebe uma nota 9, surpreendente assim como o que antes fora pensado como um ponto forte da escola: o enredo, que repete a nota. Ainda assim, com 87 pontos, o Acadêmicos do Cubango encerrou a apuração na primeira colocação, apenas 1 ponto a frente da Unidos do Viradouro, que recebeu uma nota 8 em enredo. Estava alcançado o objetivo: o pentacampeonato inédito na cidade, que até os dias de hoje somente foi igualado entre 1980 e 1984 pela Viradouro.
Essa é uma história de união e dedicação dos mais variados artistas e foliões por um bem comum que resultou em sucesso e, em contrapartida, foi capaz de projetar ainda mais a folia niteroiense no cenário carnavalesco nacional. À época, em entrevista o mestre Candeia elogiava largamente as escolas da cidade por se manterem fiéis a suas raízes, sendo esse o verdadeiro carnaval que sonhava para sua agremiação, o Quilombo. Outra personalidade que opinou acerca foi Jorge amado, que assistiu aos desfiles de 1979 em Niterói, pois era o enredo da Souza Soares. Jorge, de maneira categórica, afirma em uma declaração ao rádio que: “O desfile o deixava muito emocionado e que estava achando o carnaval de Niterói muito mais autêntico que o carnaval do Rio de Janeiro”. Proferindo então sua opinião que até hoje orgulha os sambistas da Cidade Sorriso: “É o carnaval de Niterói o segundo melhor do Brasil”.
Entre tanto trabalho, esmero e sonhos, podemos dizer: ‘Essa é a história do afoxé…’

 Fontes:

-       O Pasquim, 507, 16 a 22 de Março de 1979
-       A Luta Democrática, 7739, 14 de Fevereiro de 1979
-       A Luta Democrática, 7750, 6 de Março de 1979
-       O Fluminense, 2690, 7 de Janeiro de 1979
-       Memórias de Heraldo Faria, em heraldofaria.blogspot.com/

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João Perigo é compositor e pesquisador do carnaval.
Autor do livro "Carnaval de Niterói - O Resgate das Memórias Esquecidas", onde realiza um estudo sobre a história do carnaval niteroiense, especialmente dedicado a Combinado do Amor, Souza Soares, Sabiá e Corações Unidos.
Na Cadência, João aborda os sambas enredo e a sua relação com a memória do carnaval.

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