O pesquisador, escritor e compositor João Perigo volta ao ano de 1979 para lembrar os acontecimentos que levaram o GRES Acadêmicos do Cubango a mais importante conquista de sua história, o famoso Pentacampeonato. Confira o artigo.
Abrindo os Portões Imaginários
por João Perigo
Através dos portões imaginários
seremos levados ao longínquo ano de 1979, precisamente à cidade de Niterói. O
carnaval local parece dominado pela tetracampeã verde e branca do Morro do
Abacaxi. É isso… Toda a atenção estava voltada para o que preparavam os bambas
do Cubango, denominados Acadêmicos, para o tão sonhado penta. Marco notório que
atingiriam antes mesmo da Seleção Brasileira.
Um projeto
campeão dependeria de um enredo bem escolhido. O departamento cultural optou
pelo enredo “Afoxé”, uma verdadeira reverência a festejos de cunho religioso
realizados na antiga capital da Nigéria, popularizados posteriormente no
Brasil, sobretudo na cidade de Salvador: a verdadeira resistência de camadas
populares do Brasil, portanto, um enredo rico em cultura, com apelo popular e
com temática afro, marca principal da agremiação.
Redigida a
sinopse foram convocados os poetas da casa com uma missão nada simples:
escrever um hino capaz de levar o Cubango ao título e entrar para a história
como o samba do pentacampeonato. As parcerias já se desenhavam há meses. Como
por um acaso do destino Heraldo Faria, campeão das disputas de samba enredo
para o carnaval de 1978 e ainda novato na ala, convida Flavinho Machado para
que façam juntos o samba. Flavinho se empolga com a ideia, mas não firma
parceria por resistência de João Tapê, que não queria um terceiro elemento em
sua composição. A ironia é que Flavinho e Heraldo formariam a partir do
seguinte carnaval uma das duplas mais prósperas nas composições de sambas
enredo, tendo alcançado importantes vitórias na Cubango, Viradouro e Mangueira
durante as décadas seguintes.
Heraldo relata
que à época andava pensativo quanto à abordagem que utilizaria na composição.
Tinha ciência que a grande maioria do compositores se atinha ao texto fornecido
pela escola. Porém, o jovem compositor tinha a intenção de ir mais a fundo,
conhecer de fato o enredo e compreender a história narrada para só então
colocar algo no papel. Seria necessária uma pesquisa acerca do tema, fugir das
limitações da sinopse, método empregado pelo campeoníssimo David Corrêa nas
escolas de samba cariocas e muito utilizado por ninguém menos que Silas de
Oliveira, o grande nome do samba enredo.
Dentre as
pesquisas encontraria um livreto do Ministério de Educação e Cultura sobre Mãe
Menininha do Gantois, narrando uma viagem à Nigéria, precisamente na região de
Lagos, foco central do enredo. Neste material constatou que Xangô, oriundo da
região, tinha o camelo como seu animal preferido e, portanto, sagrado devido a
sua longevidade e resistência sob o intenso calor do deserto. A referência fora
corroborada por outros livros e Heraldo viu-se inclinado a finalizar o samba
citando tal fato, que nem mesmo pertencia à sinopse, aliado a um refrão cuja
letra seria de domínio público. Desenhava-se assim uma das mais importantes
obras do carnaval Niteroiense, que nem mesmo estava finalizada, sequer
escolhida como samba oficial do Cubango.
O primeiro passo
seria mostrar a seu parceiro João Belém que, como motorista, trabalhava para a
prefeitura em um canteiro de obras na praia de Icaraí. Lá foi Heraldo com os
rabiscos debaixo do braço cantarolar sua melodia. João, com um sorriso de
orelha a orelha dispara: “Isso é uma bomba! Vamos pegar esse caminho!”.
Marcaram então para finalizar o samba no dia seguinte e, quando o fizeram, solfejaram a recém nascida canção. Heraldo se
assusta ao olhar pro parceiro e perceber que estava chorando copiosamente,
visivelmente emocionado com o que haviam criado.
No domingo
seguinte Heraldo compareceu a uma feijoada no morro do Abacaxi, mais
precisamente na casa de Belém, muito querido na comunidade. João não havia
começado sua trajetória no mundo do samba ontem, sabia como tudo funcionava.
Não bastava que a obra fosse linda, era preciso que o povo aprendesse rápido e
cantasse de forma fácil. Que maneira melhor de testar sua obra que em uma
feijoada rodeado de amigos e familiares? Assim o fizeram. Passaram o samba com
o povo presente que rapidamente encontrava-se cantando-o por completo, feito
mágica.
Dia 25 de Agosto
de 1978 iniciou-se a disputa, na sede do Fluminense, com direito a roda de
samba e toda pompa de grande evento. Oito obras foram inscritas pelos poetas da
casa. É bem verdade que algum tempo antes a Ala de Compositores tentou barrar a
participação de João Belém nas disputas, alegando sua ausência em reuniões e
ensaios, tendo sido até mesmo votada sua suspensão em assembléia. Por sorte a
situação foi contornada e a verde e branca foi agraciada com uma espetacular
obra que, ganhando força na eliminatória do dia 8 seguinte, chegou com fôlego,
e certa sobra, para a grande final do dia 29 de Setembro. O resultado não
poderia ser outro: Heraldo Faria bicampeão e João Belém, apesar de veterano,
ganhara seu primeiro samba enredo em sua amada escola.
A repercussão pré
carnaval aconteceu de maneira nunca antes vista na cidade. A força melódica da
obra aliada à poética simples e de requintado bom gosto rendeu uma gravação de
qualidade no elepê das escolas de samba de niterói de 1979, que não havia sido
produzido mais desde um teste inicial em 1974. Esse conjunto de fatores
impulsionou a composição pela Baía de Guanabara e pelo resto do Brasil, sendo
apontada por especialistas e jornais da época como o melhor samba enredo do
país naquele ano. Segundo o Pasquim de 16 de Março: ‘Infinitamente superior a
tudo que será cantado na Marquês de Sapucaí”. Durante o período de carnaval o
Cubango é inclusive convidado para desfilar no Rio de Janeiro sob alegações de
que não teria mais concorrentes em sua cidade de origem.
Seguiam os
ensaios às sextas no Fluminense e aos domingos no ginásio do Fonseca. Bateria e
canto afiados para uma apresentação impecável frente aos jurados durante os 70
minutos de desfiles nos 400 metros de passarela na Amaral Peixoto. O carro de
som comandado por Flavinho e Mariozinho contaria com o reforço de gala de Elza
Soares durante o desfile, para guiar o canto dos 3200 componentes divididos em
139 alas. A bateria comandada por Mestres Charles e Nelson Nei contaria com 266
ritmistas, dentre eles 40 tamborins para abrilhantar o ritmo. A ala das
crianças com mais de 100 pequenos prometia ser uma atração à parte.
No entanto,
apesar de certos segmentos estarem trabalhando muito bem, não era a escola como
um todo que funcionava perfeitamente. Alguns atritos internos resultaram na
saída de destaques, do casal de mestre sala e porta bandeira e da Ala dos
Artistas por completo, que migrou para a Viradouro.
Os trabalhos no
barracão, situado na Rua Visconde do Rio Branco, seguiam comandados por Luiz
Beleza, Neném, Ari Sergio, Flavio Duarte, José Fraga, Luís Gonzaga, Ledir,
Carlos Alberto, Jair Castor, Jorginho, Paulinho, Eugênio e Borges a construção
de quatro carros alegóricos, doze tripés com máscaras tribais e o famoso portão
imaginário, feito de bambu e com efeitos de fumaça com gelo seco. O abre alas,
do Afoxé, possuía medalhões em cobre, o nome da escola e como destaques um
menino representando Babalotim e sete mulatas. No segundo carro oito ninfas de
Exu guardando um tesouro, com fantasias caríssimas. O terceiro carro contava
com atabaques, à frente da bateria e o quarto e último carro traria Xangô e seu
Camelo sagrado, sendo o mais aplaudido durante o desfile oficial, orçado em
quatro milhões de Cruzeiros, pensado em cada detalhe a exaustão para que nada
desse errado na busca pelo Pentacampeonato. A mente por trás de cada detalhe
era Carlos Alberto Costa, carnavalesco com bagagem e passagem vitoriosa pela
agremiação.
Ao pisar na
Avenida Amaral Peixoto o GRES Acadêmicos do Cubango é recebido pelo público de
forma calorosa. Os vinte mil presentes se agitaram nos primeiros versos
cantados por Elza Soares. Daí em diante tudo que se ouvia eram os refrões
entoados a plenos pulmões pelas arquibancadas e pelos desfilantes que
transbordavam de animação. O Sol das seis da manhã, nascendo por detrás do
Morro Indígena refletia nas roupas brilhantes, tudo friamente calculado. Apesar
de não ter conseguido levar os 3200 prometidos desfilantes a Cubango foi uma
das maiores agremiações a cruzarem a Amaral Peixoto em 1979, conseguindo,
segundo a imprensa: “Unir seus sambistas numa só corrente”.
Viu-se àquela
noite um desfile de gala. Trajes africanos, pedrarias, mulheres onças.
Concebidos em materiais baratos e de grande efeito, como sisal, lamê e ráfia.
Os destaques foram muito elogiados pelo “banho de luxo”.O Cubango deixa a
passarela já de dia, depois das sete da manhã, sob gritos de Campeã e
arrastando o público em um bloco que se estenderia para além dos eventos
oficiais.
Na apuração as
notas não fogem ao esperado: o antológico samba enredo gabarita, assim como
alegorias, harmonia, bateria, fantasias e comissão de frente. O casal, elogiado
pelo imprensa em sua apresentação, recebe uma nota 9, surpreendente assim como
o que antes fora pensado como um ponto forte da escola: o enredo, que repete a
nota. Ainda assim, com 87 pontos, o Acadêmicos do Cubango encerrou a apuração
na primeira colocação, apenas 1 ponto a frente da Unidos do Viradouro, que
recebeu uma nota 8 em enredo. Estava alcançado o objetivo: o pentacampeonato
inédito na cidade, que até os dias de hoje somente foi igualado entre 1980 e
1984 pela Viradouro.
Essa é uma
história de união e dedicação dos mais variados artistas e foliões por um bem
comum que resultou em sucesso e, em contrapartida, foi capaz de projetar ainda
mais a folia niteroiense no cenário carnavalesco nacional. À época, em
entrevista o mestre Candeia elogiava largamente as escolas da cidade por se
manterem fiéis a suas raízes, sendo esse o verdadeiro carnaval que sonhava para
sua agremiação, o Quilombo. Outra personalidade que opinou acerca foi Jorge
amado, que assistiu aos desfiles de 1979 em Niterói, pois era o enredo da Souza
Soares. Jorge, de maneira categórica, afirma em uma declaração ao rádio que: “O
desfile o deixava muito emocionado e que estava achando o carnaval de Niterói
muito mais autêntico que o carnaval do Rio de Janeiro”. Proferindo então sua
opinião que até hoje orgulha os sambistas da Cidade Sorriso: “É o carnaval de
Niterói o segundo melhor do Brasil”.
Entre tanto
trabalho, esmero e sonhos, podemos dizer: ‘Essa é a história do afoxé…’
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O Pasquim, 507, 16 a 22 de Março de 1979
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A Luta Democrática, 7739, 14 de Fevereiro de 1979
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A Luta Democrática, 7750, 6 de Março de 1979
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O Fluminense, 2690, 7 de Janeiro de 1979
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Memórias de Heraldo Faria, em heraldofaria.blogspot.com/
João Perigo é compositor e pesquisador do carnaval.
Autor do livro "Carnaval de Niterói - O Resgate das Memórias Esquecidas", onde realiza um estudo sobre a história do carnaval niteroiense, especialmente dedicado a Combinado do Amor, Souza Soares, Sabiá e Corações Unidos.
Na Cadência, João aborda os sambas enredo e a sua relação com a memória do carnaval.
Na Cadência, João aborda os sambas enredo e a sua relação com a memória do carnaval.
Outras colunas do João Perigo:
- Sossego e Oceânica. Em se plantado tudo dá
- Uma disputa que marcou o Carnaval de Niterói
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