O pesquisador, escritor e compositor João Perigo desta vez aborda o carnaval niteroiense de 1973, o "Carnaval do 4º Centenário". Uma festa marcada com antecedência, seguindo modelo de 1965, utilizado nos 400 anos do Rio de Janeiro, mas que se tornou num dos mais polêmicos da então Capital do Estado do Rio. Confira o artigo.
Montagem das arquibancadas na Amaral Peixoto (foto: Acervo Jornal 'O Fluminense' publicada em 21 de fevereiro de 1973)
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O carnaval ‘Quatrocentão’ de Niterói
por João Perigo
Em meados de
Novembro de 1971, a Prefeitura Municipal de Niterói anunciou um ousado plano de
comemorações pelo quarto centenário da cidade, que ocorreria em 73. As
festividades foram planejadas para todos os dias do ano comemorativo, incluindo
concursos artísticos e culturais; congressos técnicos, científicos e
ecumênicos; competições esportivas; festas; visitas e embelezamentos (1).
A comissão
organizadora das festividades não deixaria de fora a maior manifestação
cultural do município: o carnaval e, especificamente, os tradicionais desfiles
dos ranchos e das escolas de samba. Os cortejos apresentariam enredos
tematizados por fatos marcantes e históricos da capital fluminense, seguindo o
modelo já utilizado, em 1965, na comemoração do aniversário de 400 anos da
cidade do Rio de Janeiro. O regulamento não mostrou-se tão rigoroso com o
passar do tempo e, das 25 agremiações desfilantes, apenas 15 de fato versaram
sobre a temática proposta (2).
As principais
ruas do centro da cidade começaram a ser enfeitadas nos dias finais de Janeiro
de 1973, com elementos do passado brasileiro, como vitrais, arcadas, lampiões e
estandartes, modernizados e mesclados com elementos carnavalizados como
palhaços e flores. O tema escolhido por arquitetos e estagiários da Prefeitura,
‘400 anos de alegria, flor e amor’, visava o impacto visual e a criação de um
grande efeito de cores, respeitando-se o apertado orçamento. Para isso, madeira
foi utilizada nas peças estruturais e o vidro dos vitrais foi substituído por
plástico colorido. Arquibancadas metálicas foram também planejadas e montadas
entre as ruas Barão do Amazonas, Maestro Felício Toledo e Visconde de Uruguai (3).
As festividades
carnavalescas se iniciariam em primeiro de Março, quinta-feira, no Clube de
Regatas Icaraí, com o tradicional ‘Baile das Atrizes’, que pela primeira vez em
37 anos seria realizado fora do estado da Guanabara. Os desfiles oficiais
seriam abertos no sábado de carnaval pelos blocos e seguiriam no domingo com as
escolas do primeiro grupo e na segunda-feira com as agremiações do segundo
grupo. A concentração dos desfilantes ocorreria na própria passarela de
desfiles, a Avenida Amaral Peixoto, na altura da Rua Barão do Amazonas.
Interessante notarmos que, se fosse do interesse das escolas apresentar em seus
desfiles um sistema sonoro móvel, o mesmo deveria ser providenciado pelas
agremiações. Segundo o regulamento: “Será
permitido às entidades participantes o uso de alto-falantes montados em
carretas. As carretas que sofrerem avarias e causarem transtorno deverão ser imediatamente
retiradas do desfile, sob pena de desclassificação da agremiação concorrente”.
O regulamento,
que já previa alterações para o carnaval seguinte, como a criação de um
terceiro grupo, apresentava também critérios para a apresentação de cada concorrente.
As escolas de samba do primeiro grupo deveriam se apresentar com o tempo máximo
de 55 minutos e com um mínimo de 600 figurantes, sob pena de desclassificação.
Já para o segundo grupo os números regulamentares reduziam-se a 45 minutos e
350 figurantes (4). As agremiações
costumavam apresentar-se com contingentes maiores que os regulamentares,
valendo-se comumente de enxertos de foliões de escolas de samba cariocas como
Império Serrano, Salgueiro, Portela e Mangueira, o que fazia do carnaval da
cidade bastante volumoso em material humano em desfile.
Para o domingo, a
data mais importante do calendário momesco em Niterói àquele ano, seria
realizado um desfile com as mais luxuosas fantasias batizado como ‘A parada de
cores e elegância’. O evento contaria com a participação dos maiores expoentes
dos concursos de fantasias como Clóvis Bornay, Evandro de Castro Lima, Wilza
Carla e Mauro Rosas, desfilando seus mais elegantes trajes.
Apesar dos
investimentos para as comemorações dos 400 anos da cidade, a organização, de
maneira geral, não era muito diferente do que os sambistas ainda nos dias de
hoje vivenciam. O sorteio oficial foi realizado apenas em Janeiro e as
subvenções foram pagas às vésperas dos desfiles, provocando as tradicionais
correrias para a confecção de alegorias e fantasias.
O período que
precedeu os desfiles foi chamado pela imprensa de ‘Guerra do Samba’. Algumas
escolas finalizavam suas alegorias em locais particulares, com profissionais
trabalhando durante todas as horas do dia a portões fechados, com medo de
espionagem das rivais. Outras agremiações, como o Império de Niterói e o
Combinado do Amor, não divulgaram seus enredos e sambas à imprensa até as
vésperas dos cortejos por medo de possíveis plágios. Nesse sentido, Sabiá e Bafo do Bode, do segundo grupo,
confeccionaram seus carros alegóricos no antigo Pavilhão Permanente de
exposições, ao lado da Estação das Barcas, e proibiram a entrada de quaisquer
pessoas que não fossem os sambistas ligados diretamente às execuções dos
trabalhos artísticos. Às vésperas do carnaval, os artistas encontravam-se
comendo e dormindo nos barracões, em uma verdadeira batalha contra o tempo (5).
Finalmente
começaram os festejos, mas não da maneira esperada. A eleição da ‘Rainha do
Carnaval’ Ana Maria, em Fevereiro, já havia dado indícios de uma baixa procura
por certos tipos de eventos, dada a pouca audiência e o reduzido número de
candidatas inscritas. Na sequência, o Baile das Atrizes mostrou-se um
verdadeiro fracasso (5), mesmo com a presença de grandes nomes como Regina
Duarte e Bibi Ferreira. Artistas e niteroienses não se interessaram muito em
comparecer ao evento, que ficou marcado pelo reduzido público, preços caros e
desorganização. Diferentemente, o Clube Canto do Rio obteve sucesso absoluto
com seu “Baile do Associado”, reunindo quase 2.000 animados foliões em suas
dependências, ofuscando os festejos realizados no Clube de Regatas.
Em 1973, o
carnaval de rua e dos bairros já encontrava-se perdendo espaço para os festejos
de salão (6). Ao passo que tradicionais comemorações, como o carnaval do
Barreto, não mais contavam com decoração e nem grande apelo popular, os bailes
de maneira geral faziam sucesso entre os niteroienses. Àquele ano foram, além
dos já citados, realizadas grandes festas no Regatas Gragoatá, Pró-Cubango,
Fiat Fonseca, Fluminense, Banda Portuguesa, Flamenguinho, Universitária e
Pioneiros. Em São Gonçalo, a tendência se assemelhava, com os bailes do Tamoio,
Mauá, Metalúrgico, Casa Unidos de Portugal e Vila Lage.
Na noite de
sábado, nove blocos animaram a Avenida amaral Peixoto, com contingentes entre
300 e 350 desfilantes e muita alegria. Foram eles Tamoio, Vai Quem Quer,
Cacique do Viradouro, Império Gonçalense, Xavantes do Paraíso, Bafo do Tigre,
Acadêmicos do Sossego, Bugres do Cubango e Boêmios da Madama. Tratava-se de um
verdadeiro teste de equipamento e pessoal para o grande evento que se seguiria.
A primeira escola
de samba do grupo principal a cruzar a Avenida no domingo de carnaval foi a
Caçadores da Vila, que havia sido campeã do Grupo de Acesso em 1972 e,
portanto, promovida à elite em 1973. Com o enredo ‘Pedra de Itapuca’, de
Marcílio Pinto, apresentou-se ainda com as arquibancadas parcialmente vazias, o
que acarretou em uma pequena participação do público. Apesar de não
decepcionar, não realizou um desfile grandioso que a colocasse como uma das
favoritas.
Entrou então na
passarela a Unidos do Viradouro, que já colecionava campeonatos na cidade. O
enredo ‘Niterói, Origem e evolução’, concebido e realizado por Clóvis Bornay e
os artistas Érico Lameiras e Nelson dos Santos, versava sobre a evolução da
cidade desde sua fundação e era orçado em alguns milhões de Cruzeiros. Os 2.000
figurantes vestidos com o requinte característico do carnavalesco e as
celebridades presentes no desfile, como Clementina de Jesus, Zé Keti e Clara
Nunes foram os pontos altos da apresentação da vermelho e branco do Viradouro.
O desfile não se traduziu entre imprensa e sambistas como um dos melhores da
escola, enfrentando críticas quanto a desenvolvimento e concepção (6):
“Todos esperavam mais da escola de Albano Ferreira [Albano
“Gordo” era o presidente da escola, responsável por investimentos e por
transformar a Viradouro em uma superpotência], que não
estava mal, mas também não repetiu os seus bons desfiles dos anos anteriores.
Vice Campeã do carnaval de 1972 e a maior colecionadora de títulos de Niterói
[...] teve seu enredo desenvolvido em sete partes, formando no conjunto um só
bloco: origem e evolução de Niterói”.
O
Fluminense de 9 de Março de 1973
Sem grande
impacto visual e caracterizada como “uma aula de geografia”, o desfile parecia
não ser cotado para as primeiras colocações. Somou-se o fato de a escola
apresentar-se sem seu primeiro mestre sala (7), o que poderia comprometer
gravemente suas notas durante a apuração.
Na sequência, o
Império de Niterói não conseguiu levantar o público com seu enredo ‘Aldeia de
São Lourenço’, realizando a apresentação mais morna da noite.
O cenário mudou
quando apontou na concentração a Canarinhos da Engenhoca, com o enredo ‘Glórias
ao Teatro brasileiro’, que exaltava a importância dessa forma de manifestação
cultural. Suas alegorias foram apontadas como as melhores de 1973 e os grupos
de dança coreografados, como o de Mercedes Baptista, arrancaram sonoros
aplausos da público presente.
Dadas as
temáticas históricas e culturais do ‘Carnaval Quatrocentão’, a maioria das
escolas optou por recorrer a professores e historiadores para o desenvolvimento
de seus enredos. Não foi diferente com a Universidade do Samba Mem de Sá,
famosa por ter em suas fileiras universitários, intelectuais e acadêmicos da
cidade. No entanto, em 1973, não vivenciaram sua melhor performance ao
apresentar o enredo ‘Brasil de Bronze, de Miguel Coelho e Adalu Pimentel. A
escola de Icaraí exaltou o Brasil Mestiço e sua miscigenada cultura, sem
contagiar as arquibancadas.
Na sequência,
pela primeira vez na noite, o público se empolgou de vez com a passagem da
Corações Unidos. Os sambistas da Engenhoca apresentaram ‘Do limão de cheiro ao
municipal’, um enredo construído sob uma ótica saudosista dos antigos carnavais
de ranchos, sociedades e luxuosas fantasias, apresentando como pano de fundo o
pomar que tomava conta do terreno onde hoje encontra-se o Teatro Municipal de
Niterói. Pierrôs, arlequins, colombinas e dominós tomaram a avenida cantando o
samba composto por José Carlos e Haroldo Ornellas. Grande atração foi a muito
bem acabada alegoria que representava o Teatro, refletindo a busca da
agremiação por notas máximas em um quesito que tradicionalmente era bem
avaliada.
Mesmo prejudicada
pela chuva, a Combinado do Amor foi apontada como favorita após um desfile
impecável, no qual 900 figurantes e quatro alegorias contaram o enredo
‘Exaltação a Niterói’, de autoria do professor Marcos Reis. A apresentação
orçada em mais de 30 mil Cruzeiros encantou o público presente com uma
belíssima ala de baianas, uma entrosada bateria de 50 ritmistas (a menor da
noite) e 10 bem vestidos destaques, dentre os quais Dom Pedro II e Araribóia.
Ao fim da festa,
entrando na avenida apenas às 03:15 da manhã, a Acadêmicos do Cubango viu toda
sua organização de desfile se desfazer em razão do temporal. A escola trouxe o
enredo ‘Praia Grande’, de Ney Ferreira, versando sobre o lugar que encantou a
nobreza com suas raras belezas. O desfile apresentou a tradicional cerimônia do
beija mão, quando das visitas de Dom João VI a Niterói e um conjunto de
fantasias impecável que impressionava pelo luxo (8).
Geral foi a
surpresa quando da abertura dos envelopes: Viradouro campeã, Combinado do Amor
vice e Cubango e Canarinhos da Engenhoca dividindo o terceiro lugar. O
resultado, apesar de muito contestado, proporcionou à Unidos do Viradouro seu
décimo segundo título no grupo especial da cidade e longas festas regadas a
chopp e churrasco na Quadra do Ipiranga, local de ensaios da agremiação durante
o período. A agremiação tornou-se também a única escola de samba a desfilar em
dois carnavais comemorativos em duas cidades diferentes (Rio de Janeiro em 1965
e Niterói em 1973). No segundo grupo
sagrou-se vencedor o Bafo do Bode, ganhando assim o direito de ascensão à elite
em 1974.
O carnaval da
cidade, mesmo com todos os contratempos enfrentados em seu quarto centenário
seguiu um vertiginoso crescimento em quesitos organizacionais, técnicos e
artísticos, servindo as experiências de 1973 como trampolim para o
engrandecimento local da festa, capaz de proporcionar grandes avanços em anos
posteriores. Niterói, ao contrário do que muitos pensam, nunca se limitou a um
modelo de cópia da capital carioca, mostrando-se, muitas vezes, inovador, como
ao realizar a primeira homenagem biográfica a uma personalidade viva
(Canarinhos da Engenhoca 1975) e ao construir o primeiro sambódromo do país
(Sambópolis de 1981).
1. NÓBREGA, Regina. ‘400 anos de Niterói, festa de todo mundo’. O Fluminense, Edição 20920 de 7 de Novembro de 1971, Pg 8.
2. SILVEIRA, Leandro Manhães; VIUG, Matheus Tavares; SILVA, Winnie Delamar de Souza. Antigamente é que era bom: A folia niteroiense entre 1900 e 1986. 1. ed. Niterói: Niterói Livros, 2017. 262 p. ISBN 978-85-85896-53-9.
3. ‘Cidade começa a vestir sua fantasia na semana que vem’. O Fluminense, Edição 21285 de 18 de Janeiro de 1973, Pg 12.
4. ‘Carnaval niteroiense será na base do vitral’. O Fluminense, Edição 21289 de 23 de Janeiro de 1973, Pg 5.
5. ‘Escolas e Blocos apressam enredos para os desfiles’. O Fluminense, Edição 21316 de 23 de Fevereiro de 1973, Pg 13.
6. PERIGO, João. Entre o asfalto e a passarela: O olhar carnavalesco de Clóvis Bornay. 1. ed. Joinvile: Clube de Autores, 2020. 160 p. ISBN 978-65-000-2914-7.
7. PERIGO, João. Carnaval de Niterói: O resgate das memórias esquecidas. 1. ed. Joinvile: Clube de Autores, 2016. 177 p.
8. Título de Campeã do Carnaval Quatrocentão está entre Cubango e Combinado do Amor. O Fluminense, Edição 21325 de 8 de Março de 1973, Pg 16.
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João Perigo é compositor e pesquisador do carnaval.
Autor do livro "Carnaval de Niterói - O Resgate das Memórias Esquecidas", onde realiza um estudo sobre a história do carnaval niteroiense, especialmente dedicado a Combinado do Amor, Souza Soares, Sabiá e Corações Unidos.
Na Cadência, João aborda os sambas enredo e a sua relação com a memória do carnaval.
Na Cadência, João aborda os sambas enredo e a sua relação com a memória do carnaval.
Outras colunas do João Perigo:
- Sossego e Oceânica. Em se plantado tudo dá
- Uma disputa que marcou o Carnaval de Niterói
- Abrindo os Portões Imaginários
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