.

.

domingo, 10 de março de 2019

Magueira reescreve e faz História na Avenida.

domingo, 10 de março de 2019
Nosso colunista André Gustavo analisa o desfile campeão da Estação Primeira de Mangueira. Para o professor e historiador, a vitória da verde e rosa foi indiscutível, ratifica a importância do enredo para o contexto histórico, cultural e social e classifica o desfile 'inesquecível e imortal', entre os três principais da era Marquês de Sapucaí. Confira.
Carnaval Rio 2019 - Mangueira
foto: Richard Santos | Riotur

Magueira, em estado de graça, reescreve e faz História na Avenida. 
por André Gustavo

Revi detalhadamente o desfile da Mangueira após comentários críticos de pesquisadores e artistas que respeito e que me ajudaram a abrir os olhos para o que me passou despercebido em meio a emoção do momento. O espetáculo apresentado pela Verde e Rosa no domingo de carnaval está anos luz a frente de qualquer outro que passou este ano e, ouso dizer, em todos os outros carnavais, pela Sapucaí. Está a altura do campeoníssimo Kizomba e do injustiçado Ratos e Urubus, embora numa linha bem diferente das obras citadas. Único em sua proposta de recontar a História do país do ponto de vista daqueles que são, propositadamente, colocados à margem, ou além dela, nos livros didáticos de nossas escolas. Índios, pretos, pobres, mulheres cujos livros de história não citam, por não terem o perfil ideal, a cor que certa, a etinia pertinente, a origem social devida. Por não terem a imagem que fica bonita na foto, como a do navegante colonizador, do andarilho desbravador, do príncipe libertador, da princesa redentora, do militar salvacionista e guardião da nação. As imagens com os quais nós, brasileiros, nos identificamos. Personagens que admiramos e que são uma inspiração para nós por serem guerreiros, corajosos e abnegados. Desde o início a Historia do Brasil nos é contada apresentando como herói o invasor Cabral e seus comparsas e não os povos originários que morreram defendendo sua terra contra a agressão colonialista. 

O povo preto é apresentado como covarde e submisso tendo aceito passivamente os grilhões que lhes foram impostos em troca de alimento, civilização e catequese, como se tais "compensações" atenuassem a condição de cativeiro, maus tratos e trabalho compulsório a que foram submetidos e lhes proporcionasse uma condições de vida melhores do que a que viviam em meio a barbárie e a selvageria no continente africano. Somente tiveram melhor sorte graças a intervenção das mãos abençoadas e abençoadoras da princesa branca que, num ato de caridade e humanismo, livrou-lhes de correntes e cativeiro. 

 A Igreja Católica que sempre esteve ao lado dos poderosos em todos os períodos da nossa história e que apoiou o roubo da terra dos indígenas e a destruição de sua cultura em nome do progresso e da riqueza dos europeus, tendo ainda sido conivente e chegando mesmo a incentivar a escravidão africana, além de ter sido partidária da Ditadura Militar que matou em nome da tradição religiosa, torturou pela defesa da família brasileira e que implantou no país um regime totalitário para proteger e ampliar a propriedade privada. A mesma Igreja que hoje em dia posa de santa, defendendo a vida contra o aborto, os bons costumes contra a corrupção de alguns grupos, enquanto tolera e se beneficia de outros e a fé contra os esquerdopatas ateus e hereges. Os livros que a esses exalta costumam não trazer nenhuma linha sobre o Dragão do mar Francisco José do Nascimento que junto com seus companheiros jangadeiros no Ceará precipitaram o fim da escravidão naquela província ao se insurgirem e se organizarem decidindo não mais desembarcar dos navios negreiros os africanos sequestrados em África e trazidos cativos para o Brasil. Ou sobre as batalhas lutadas pelos Caboclos de Julho que foram obrigados a, corajosamente, defender com armas e com a vida na Bahia a independência creditada ao príncipe português. 

Cala-se também a História sobre o vergonhoso Massacre de Porongo no Sul do país, página em branco da ousada Revolução Farroupilha, e que fora condição estabelecida para o armistício entre os admirados farrapos e o heróico general Caxias que, ardilosamente, tramaram uma última batalha apenas para por fim ao batalhão dos laceiros negros formados por africanos que se destacaram com bravura e grande combatividade durante os dez anos de luta contra o Império em troca da liberdade deles é de seus irmãos e irmãs prometida por seus ex senhores. Também não nos fala da República Comunista Indígena de Sete Povos das missões, também no Sul, que com o apoio de jesuítas rebelados contra a Igreja e a Coroa Portuguesa criaram uma comunidade autônoma onde viveram a paz e a igualdade de uma sociedade coletivista que foi traída e massacrada pela ganância de portugueses e espanhóis inconformados com o desperdício de terras que os indígenas ocupavam. E assim foi com todos e todas que ousaram desafiar o poder neste país. Procura-se esconder a luta dos Malês que teve uma mulher preta como uma de suas líderes, Canudos e Cabanos, Sabinos e Balaios, Quilombos e quilombolas que tinham teus e rainhas a frente de um exército de rebeldes. Pervertem a história da vereadora carioca Marielle friamente assassinada por facínoras a mando de outros, procurando associá-lá a traficantes por conta de sua origem favelados. 

Todas e todos que ousaram lutar contra a injustiça e a crueldade do sistema e que são descartados e omitidos pela história por não se encaixarem no estereótipo de herói de uma nação construída a base de muita exploração, muita violência, muito sangue derramado e muitas vidas destruídas. E é emocionante ver essa história ser resgatada pelo samba que também fora alvo de perseguição social e repressão cultural por sua origem pobre e africana. Principalmente se considerarmos os tempos que estamos vivendo. Onde se naturaliza intolerâncias de todo tipo, falseamentos da realidade, violência contra os mais pobres e contra ativistas de direitos humanos por parte de agentes do Estado. 

Tudo isso, resultado direto de uma cultura histórica deformada e elitista que nos faz ainda hoje crer em mitos salvadores que sairão garbosamente fardados de seus quartéis para impor uma desejada ordem social destruindo aqueles e aquelas apontados como inimigos e as inimigas do povo e da nação. E torna-se ainda mais significativo que esse resgate seja feito por uma escola de samba da altura e importância da Mangueira.

O impacto cultural, social e histórico dessa obra de arte assinada por Leandro Viera e cia, entrará, sem sombra de dúvidas, para o hall dos desfiles inesquecíveis e imortais. O show que apreciamos no domingo certamente será alvo do estudos de pesquisadores, comentários de apaixonados, crítica de especialistas e debates em salas de aula e nos bares e botequins onde se reúnem bambas para bater um bom papo regado a cerva e tira gosto. A profunda crítica social que o enredo faz à chamada história oficial, está presente não apenas no samba da escola e nas fantasias e alegorias apresentadas no desfile, mas também em uma comissão de frente emocionante, surpreendente e revolucionária, nos gestual dos componentes, no conjunto das danças apresentadas e até no toque da bateria como bem observou Luiz Antonio Simas(*). 

Os elementos reflexivos, alusivos ou mais gritantes, podem ser vistas com clareza e limpidez ao longo de todo o desfile. É uma verdadeira ode aos que foram e são esquecidos, negligenciados, massacrados e oprimidos pelos donos do poder desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Pequenas imperfeições ou falhas e até mesmo a perda do título ou uma covardia absurda como a que fizeram com a Vai Vai ontem em SP, não vão conseguir tirar o brilho nem apagar aquele que foi um dos mais belos e importantes desfile que já passou pela Sapucaí. E que foi uma porrada muito bem dada na cara dos donos do poder de ontem de hoje e de sempre, e também dessa sociedade hipócrita.

(*) O pesquisador e historiador Luiz Antonio Simas fez uma observação muito sagaz sobre a bateria da Mangueira. Na parte em que o samba diz "quem foi de aço nos anos de chumbo" os ritmistas ameaçam começar uma marcha militar. Mas na sequência entra o verso "Brasil chegou a vez de ouvi a as Marias, Mahins, Marielles, Malês..." e a bateria passa a tocar uma muzemza, rítmo típico do Candomblé de Caboclo, que engole a marcha militar. Sensacional!

PS.: O texto foi escrito na manhã da quarta feira de cinzas, antes da apuração que nos deu a campeã do Carnaval. Não precisa dizer para quem vai a torcida do autor salgueirense.
← Postagem mais recente Postagem mais antiga → Página inicial

0 comentários:

Postar um comentário

Na Cadência da Bateria

Na Cadência da Bateria
Carnaval de Niterói é na Cadência

Aconteceu na Avenida

Aconteceu na Avenida
O editor do blog, Luiz Eugenio, entrevistando o intérprete Willian no Carnaval 2008

Musa da Cadência 2013

Musa da Cadência 2013
Danúbia Gisela, a madrinha da bateria do GRES Tá Mole mas é Meu

Momentos do Carnaval 2013

Momentos do Carnaval 2013
Jéssica. Porta-bandeira do Experimenta da Ilha

Explosão da Folia

Explosão da Folia

Folia e Souza. Campeãs 2015

Folia e Souza. Campeãs 2015